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Escreve-se porquê?


Nunca fui moço de ter heróis de vida. Andei sempre muito para dentro de mim mesmo, e ainda o faço. Vi muitos, todos feitos de malhas felizes e movimentos sem freios e fugi-lhes dos caminhos, desconfiado, sempre que pude. Tive as cuecas metidas no rego mais vezes do que achei razoável, mas nem assim mudei para menos crica do que aquilo que sou.
Primeiro foram os LEGOS, e aquilo tomou-me de assalto e durou anos e anos de satisfação indolor. Não havia maneira de me cansar daqueles encaixes coloridos. Faziam-me sentido, acalmavam-me e já me instruíam um pouco na arte de se contar uma história. Depois, mostrei as cores das minhas verdadeiras compulsões e atirei-me ao coleccionismo. Coleccionei praticamente de tudo a que podia deitar a mão sem grandes custos; selos, latas, rótulos, moedas, isqueiros, bases de copos.. acalmei todo este furor, ou quiçá o tenha substituído por outro, quando li a primeira revista da Editora Abril do Pato Donald. A inocência não sabe de que terra é, e eu, fundamentalmente, era um imaculado inofensivo, cheio de esperma em formação.
As ruas que levam os corpos para casa eram o que eu fui. E a revolução seguiu o seu percurso. Desfiz-me de toda aquela quinquilharia, da filatelia à numismática, da porcaria das latas que me ensinaram a falar inglês, ao tio estranho que me trazia rótulos de cerveja do Luxemburgo, e comecei a juntar todos os dois e quinhentos que agarrava por mão de águia, para comprar revistas de banda-desenhada. 
A seguir à escola evitava as admirações e outros afagos da amizade e metia-me na metade do quarto dos meus pais, que primeiro, serviu de silo para arrobas incontáveis de batatas, depois para sala de costura, e por fim, para a minha biblioteca pessoal e para as minhas colecções de "miquizes". 
Estrelas nas paredes do quarto? É certo que no liceu me vi quase obrigado a arranjar pelo menos uma e a escrever o nome dele até à exaustão com letras estilizadas. Era isso ou apaixonar-me e escrever-lhe o nome na mochila, malgrado o riso trocista que me caía em cima. Mas era tudo um embuste. Soubesse assertivo de que se tratava o racismo e a discriminação nessa altura, e ter-me-ia encaixado como uma luva nas definições. Vivia às escondidas dos meus melhores amigos, por tempos em que já discutíamos com grande ferocidade a importante questão do tamanho das mamas da Samantha Fox versus as da Sabrina. Ria-me claro, e anotava os pontos de vista em um caderninho porque sempre gostei de mamas e nunca lhes quis perder o fio à meada.
Só que, secretamente, levava uma outra vida dentro de casa, muito distinta da que aparentava no polivalente. 
Do Mickey passei ao Demolidor, daí ao Conan o Bárbaro, Asterix, Bilal, Moebius, e quando dei por mim, já lia Dostoiévski como um erudito de academia.
Bem se vê que não é à toa que os heróis-escritores nos amparam mais e repetidas vezes as fraquezas que outros quaisquer. Há dias em que vivo particularmente cansado e embrenho-me em histórias que me viram do avesso pelos olhos. Sinto uma bola de calor entre o peito e a barriga de uma nostalgia não sei do quê.
Foi numa dessas alturas, em um dia que alguém me prometeu o sol para ontem, que me vi virtuosismo nos dedos, e até calhou de ter defronte uma máquina de escrever. Daí, adveio todo este desastre. No ensaio do fim, ainda de lá saí esperançado, e esse foi o meu maior erro. Tomara ainda poder estar a fingir a "Vila Faia" com bonecos de LEGO.

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